02/03/2013

Descobriram uma "sanduíche da morte" escondida dentro do Génesis

 

Antigo Testamento, escrito à mão, na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra ADRIANO MIRANDA


Não se trata de um alimento envenenado, mas de uma técnica literária que foi utilizada na escrita do primeiro livro da Bíblia. E que acaba de ser revelada por um novo software de análise de textos.
O Génesis contém um padrão narrativo em torno da vida e da morte, afirmam Gordon Rugg, informático da Universidade de Keele, Reino Unido, e David Musgrave, teólogo da Universidade de Amridge, EUA. Uma técnica literária, hoje comum, mas que naquele texto com milhares de anos permanecera oculta. Os resultados deverão ser publicados em breve.

A técnica consiste em ensanduichar um tema entre duas menções de outro tema. E Rugg e Musgrave - que nunca se encontraram, mas juntaram esforços neste trabalho - descobriram-na no Génesis, cujos versos do início e do fim contêm ocorrências da palavra "vida", enquanto as ocorrências da palavra "morte" só surgem agrupadas a meio do texto, explica um comunicado de Keele.

Versão telegráfica do Génesis: é o primeiro livro do Antigo Testamento e relata a criação do mundo e as sucessivas alianças de Deus com os homens. Cria Adão, cria Eva. Perante a corrupção do mundo, desencadeia o Dilúvio, poupando só a família de Noé. Mais tarde, designa Abraão como "pai" do povo eleito. Abraão instala-se em Canãa e gera Isaac, que gera Jacob, que gera José, que é vendido como escravo aos egípcios pelos seus irmãos. José prospera, torna-se o braço direito do faraó e acaba por conduzir a família até ao Egipto.

"A detecção [desta técnica] à escala de todo o Génesis é inédita", disse Rugg ao PÚBLICO. "Tanto quanto sabemos, ninguém tinha reparado nela - talvez porque o texto é tão longo que é difícil ver o padrão pela simples leitura. Quanto à "sanduíche da morte", também é novidade. Porém, "há muito tempo que os peritos consideram que a vida e a morte são temas-chave do Génesis", frisa Rugg. "Portanto, acreditamos que não é uma coincidência, mas um artifício narrativo deliberado."

A detecção foi feita por um software de análise de texto, o Search Visualizer (SV), desenvolvido por Rugg - que sempre se interessou pelas línguas, a história, a arqueologia e os textos antigos - juntamente com Ed de Quincey, da Universidade de Greenwich (Reino Unido). O SV permite visualizar um texto como uma tabela, onde cada casa representa uma palavra. Quando uma série de palavras-chave é introduzida, elas surgem na tabela como pontos de várias cores. Parece simples... mas não é. "Há uma teoria sofisticada por trás, que envolve a partição de tarefas entre o ser humano e o computador e entre processamento paralelo e sequencial", responde Rugg.

Quando os cientistas visualizaram as palavras "vida" e "morte" na versão do Génesis da King James Bible (versão em inglês, traduzida do hebraico no século XVII), a técnica narrativa apareceu. Musgrave verificou ainda, no original hebraico, que o padrão não provinha da tradução.

O facto de a técnica ter sido usada conscientemente e em todo o Génesis prende-se com a questão da sua autoria. "O consenso no meio académico é que o Génesis foi escrito por várias pessoas", diz-nos Musgrave. "Mas para mim, uma das maiores implicações potenciais deste trabalho é que sugere uma autoria única." A "sanduíche da morte" reforça assim a hipótese de o Génesis ter sido escrito por uma só pessoa.

O SV também analisou uma versão em inglês da Ilíada, para se tentar comprovar, como há muito se suspeitava, que a secção intitulada Catálogo das Naves é mais antiga do que o resto do poema de Homero. E de facto, revelou que a palavra "quarenta" ("forty") só ocorria nessa parte da obra. "Nos textos antigos, os números podem ser reveladores", explica Rugg, referindo-se por exemplo a tecnologias de um período específico. "E quando vi essa palavra no Catálogo das Naves, pensei que podia tratar-se de um elemento arcaico e decidi experimentar."

As aplicações do SV vão muito além da análise de textos históricos e não se limitam ao inglês. A análise de testemunhos na investigação de crimes ou a pesquisa de associações de palavras na Web são apenas duas delas (verhttp://searchvisualizer.wordpress.com). "Não posso adiantar pormenores, mas já estamos em conversas com várias grandes empresas, entidades policiais e outras organizações interessadas", diz Rugg.
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